Jesus Cristo é um mano preto, caboclo. Cria das quebradas da Amazônia. Entre balas e sonhos, tem bravura para se manter de pé. Mais do que isso: quer voar, quer amar, quer a revolução. Em “Black Christ”, Daniel ADR, prodígio da cena do rap do Pará, traz a emblemática figura do salvador injustiçado e morto e dá a ele contornos de uma realidade crua, marcada pelo racismo e pela revolta, mas também repleta de pulsão de vida: paixão, fé, arte, vontade de subverter as estruturas de opressão e brilhar. Misturando trap, drill e rhythm and blues, o disco chega às plataformas digitais no dia 29 de março. O lançamento marca os dez anos de carreira do artista e traz parcerias com nomes importantes e em ascensão da música urbana periférica do Norte do país, além de faixa com Lia de Itamaracá, mulher negra fundamental na cultura popular e a maior cirandeira do Brasil. O trabalho tem o patrocínio da Natura Musical e produção executiva da Psica Produções.
O álbum traz o novo momento da carreira do rapper, que se afasta de rimas pop e festivas de “PJL”, seu EP lançado em 2021, e mostra um lado mais intimista e sensível do artista. Provocativo, Daniel ADR coloca em cena um Cristo longe da mitologia que o faz loiro e de olhos azuis. De pele escura, mestiça, Jesus se parece com cada um dos jovens periféricos que tombam todos os dias vítimas da violência, da discriminação, da falta de oportunidade. “São jovens que poderiam ser salvadores das suas casas, das suas famílias, e acabam se perdendo pelo caminho, caindo pro crime, pro tráfico”, diz. O Cristo preto humaniza o corpo preto. “Por que quando Cristo é branco, a morte dele choca, mas quando é um preto, ninguém chora? Por que quem é contra o aborto aplaude o assassinato de gente preta? Que cristianismo é esse, afinal? ”, questiona.
Filho de um casal muito jovem e que se separou quando Daniel ainda era bebê, o rapper foi criado pela avó materna, dona Raimunda. Entre os bairros do Guamá e da Cremação, periferia de Belém, cresceu ouvindo rap e samba, ritmos que narram sua trajetória desde a infância, afinal sua vivência se relaciona diretamente com as temáticas abordadas em ambos os estilos. Ali também viu muitos amigos se perderem. “Houve um ano em que eu perdi incontáveis amigos. Só recebia notícias de amigo morto, amigo preso. Eu fui uma exceção, e essas pessoas, a regra”.
O extermínio do corpo negro é o fio condutor de “Black Christ”. Para desmistificar a simbologia sacrossanta em relação a Cristo, o artista, que é Vodunsi-hê dentro do Tambor de Mina, traz Jesus dentro de uma perspectiva nortista e afro-indígena. Apesar da tragédia, há muita força de desejo e resistência nas rimas de Daniel ADR.
“Somos muito além do estereótipo do homem preto. A gente não sente só ódio, raiva. Não vive e fala nas canções apenas de tráfico, crime. Fala sobre amor, paixão, sexo, dor, consciência de classe, sobre se sentir fraco, se sentir forte”, diz.
Inspirado no som dos Racionais MC’s, o mais influente grupo de rap do país, e sobretudo na estética de Emicida, Daniel traz para o trabalho Erick Di nos beats, e parcerias com Anna Suav, jvm LEO, Leonardo Pratagy e Lia de Itamaracá.
“Ter no disco a sabedoria, a ancestralidade, a força da Lia é um presente. Ela tem uma relação forte com a afro religiosidade, e essa conexão nos une ainda mais. Tenho por ela uma relação de muito respeito,porque se hoje eu posso falar da minha fé preta nas minhas rimas, e ainda em 2024 sofro preconceito, com Lia certamente foi muito mais difícil, porque ela faz essa resistência há décadas. Mas ela não se afastou de si mesma. Ela nos abriu caminhos para que hoje a gente possa fazer arte”, diz Daniel.
“Black Christ” foi selecionado pelo edital Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura do Pará (Semear), ao lado de nomes como Azuliteral, Raidol e Festival Lambateria, por exemplo. No Estado, a plataforma já ofereceu recursos para mais de 80 projetos até 2023, como Manoel Cordeiro, Dona Onete, Pinduca, Felipe Cordeiro e Thaís Badú.
Sobre o artista
Daniel ADR é considerado na cena do rap paraense um prodígio. Ainda na escola, ele começou a rimar e seu talento começou a brilhar ainda mais na Batalha de São Braz quando, ainda com 14 anos e só três meses de rima, começou a vencer participantes com muito mais experiência. No ano seguinte, em 2014, foi considerado o melhor MC do Pará pelo Duelo Estadual de MCs, representando o estado na etapa nacional em Belo Horizonte.
Atualmente aos 25, Daniel ADR tem diversos EPs, singles e videoclipes lançados na internet. Além de música, Daniel também é beatmaker e produtor cultural, atuando como organizador da Batalha de São Braz e produtor de projetos da Psica Produções.
Sobre Natura Musical
Natura Musical é a plataforma cultural da marca Natura que há 18 anos valoriza a música como um veículo de bem estar e conexão. Desde seu lançamento, em 2005, o programa investiu mais de R$ 190 milhões no patrocínio de mais de 600 artistas e projetos em todo o Brasil, promovendo experiências musicais que projetam a pluralidade da nossa cultura. Em parcerias com festivais e com a Casa Natura Musical, fomentamos encontros que transformam o mundo. Quer saber mais? Siga a gente nas redes sociais: @naturamusical.
Faixa a faixa: confira “Black Christ” comentado por Daniel ADR
Entre balas e sonhos
A música que abre o disco fala sobre viver entre o caos, tudo o que pode te atingir, seja da forma física, como a bala, ou a depressão, a solidão, a falta de afeto, incapacidade de dar e receber carinho, coisas que marcam, machucam. A falta de perspectiva. Apesar disso, há nossos sonhos, o que tu desejas para o teu futuro, para tua vida.
Nua (No Ar)
Single lançado em 2022, a canção fala de amor. O título é sobre se despir dos receios e falar tudo o que sente, sem medo e sem amarras. E trazer essa sensibilidade, muitas vezes, para nós, homens pretos, é um desafio. Falar de paixão, de sentimento, viver o amor nos é negado. Somos condicionados a ser uma pessoa que não deve demonstrar sentimentos e fragilidades. Eu quis trazer isso nessa faixa: falar do amor de uma forma nua, sem críticas, sem rótulos ou constrangimento. Esse single é sobre se despir e se sentir vulnerável, se entregar e sobre isso tudo ser algo normal. É também sobre os tipos de afeto, entre a população preta, indígena e periférica do norte do Brasil.
1,56
Aqui há um amor mais erótico, mais explícito. Fala sobre sexo. Conta uma história de que o eu-lírico confessa que, por esse amor, sairia do mundo do crime. É uma crônica de certa forma. O amor como cura.
Slow feat JVM Léo
A faixa fala sobre a falsa sensação de preenchimento: com festa, drogas, pessoas. Vivi muito isso. Quando chega um certo estágio de status e certa fama, tudo ficou mais fácil. Passei por um período que gerou muita crise em mim: perceber que as pessoas estavam somente me sexualizando e me vendo como um pedaço de carne. A canção é um feat com o JVM Léo, artista emergente do trap da cena de Belém. Acredito que é importante fazer essas conexões entre um artista como eu, que está há 10 anos na cena, com um artista que está chegando agora.
Lázaro
A música é a última do lado A. Fala sobre formas de “crucificação”: a “morte” psicológica, da imagem, da reputação. Apesar de todas essas tentativas, manter o sonho vivo. Só paro quando o que eu almejo foi conquistado. Eu sempre fui militante, anticapitalista, creio que todas as situações que a gente vive hoje de racismo, machismo, lgbtfobia, são provenientes do capitalismo porque o sistema se alimenta da exploração, gera opressão. O sonho de vida mesmo é o fim do capitalismo, eu em vida. Isso é algo muito utópico. Então há outros sonhos: dar condição pra minha mãe, minha avó, pro meu filho. Perceber que estando dentro desse sistema, a gente tem que se adaptar a ele. Então se é para alguém fazer grana com rap, que seja eu, que seja para alguém fazer grana com arte preta, que seja eu.
Judas
Essa faixa começa falando sobre qual é o meu local na cena da música. Eu, artista preto e periférico, sempre tive que mostrar meu valor. E eu fui um dos artistas de rap que conseguiu furar isso de estar só no rap. Eu circulo em outras cenas, cenas mais alternativas de Belém. Pessoal teve que me aturar, não dava mais para ignorar meu trabalho. Um intruso no ninho. Um contexto repleto de pessoas que se dizem progressistas, mas que cometem racismo velado, que não estão nenhum pouco afim de perder os seus privilégios.
Peregrino
De todas as faixas que falam de amor, essa é a mais visceral, que mais vem de dentro. Que fala de um amor que é genuíno. Coloca o ser amado como ser divino. Um amor bem profundo, de troca, onde um faz bem pro outro, um faz concessões pro outro, reciprocidade. É um feat com a Anna Suav. Sou fã dela. Nesta faixa ela canta e compõe. É uma música mais orgânica, com pegada black music.
Sonhos
Essa faixa é uma transição com um texto gravado por Lia de Itamaracá. Ela fala sobre ter que ir atrás dos nossos sonhos, ir atrás da força que vem de lá de trás dos nossos ancestrais. “Sozinho é difícil. Forma um quilombo. Ciranda é se unir. Dê as mãos. Faça isso. Não desista. Lute pra vencer”. A letra é de autoria de Josiberto João Hees, e foi criada especialmente para o disco. Eu pedi um texto sobre sonho, sobre a vida do preto ser mais difícil, mas ainda assim, sobre termos que ter garra e ir atrás das nossas conquistas.
Afago de Oxum
Eu sou filho de Oxum, mas antes, sou filho de Ogum. Então nessa combinação, acho equilíbrio entre o doce de Oxum, a fúria de Ogum, a guerra, a força que eu trago nas outras faixas. Nessa canção, mostro que tenho o meu lado sensível, que chora, que sofro, que sente dor, tristeza. Essa faixa é uma homenagem à santa Oxum, pela minha profunda relação com o Tambor de Mina, que surgiu quando sofri um acidente de moto. Até então, eu, marxista e ateu, nunca tinha sentido o chamado da espiritualidade. Mas eu senti que algo poderoso me protegeu naquele acidente. Eu senti, algo me segurou, me salvou. Minha ancestralidade me chamou e eu segui a fé afro-religiosa.
Cicatrizes
A música encerra o disco falando de conquistas. E eu quero mais, quero andar para frente. Ao olhar para trás, você vê que muita coisa aconteceu: muitas pessoas se perderam pelo caminho, pessoas que já se foram, que partiram. A gente precisa ser grato e não esquecermos delas. São as marcas que ficam de todas as feridas que aconteceram pelos percursos. São pessoas dos nossos antepassados, desde o período da escravidão, ditadura, o genocídio preto atual, em vários amigos de infância que se foram.