Em “Diários da Caserna – Dossiê Smart”, o coronel de artilharia da reserva e advogado Rubens Pierrotti Jr. mostra que corrupção nem sempre vem com mala de dinheiro, às vezes, está escancarada no Diário Oficial
Para a maioria de nós, quando o assunto é corrupção, imaginamos ou recordamos grandes escândalos noticiados pela mídia com corruptores e corrompidos sendo pegos no flagra, seja por escutas ou gravação clandestinas, levando quantias suntuosas de dinheiro na mala ou até mesmo na cueca. Contudo, de modo geral, os atos de corrupção se dão nas sombras, de forma discreta, quase imperceptíveis a olhos não tão bem treinados, às vezes, tomando ares de legalidade. É o que aponta o coronel de artilharia da reserva e advogado Rubens Pierrotti Jr. em seu livro “Diários da Caserna – Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar”, lançado recentemente pela Editora Labrador.
O romance, baseado nas experiências vividas por Pierrotti dentro do Exército Brasileiro, narra um grande esquema de corrupção e outros atos ilícitos capitaneados por oficiais de alta patente para adquirir e desenvolver um simulador de apoio de fogo de artilharia denominado Smart, junto a uma empresa espanhola chamada Lokitec, cujo know-how para a concepção do equipamento para treinamento militar é no mínimo questionável. A obra adentra aos meandros do Exército para mostrar como funciona suas engrenagens no que diz respeito à maneira como, muitas vezes, integrantes da instituição passam por cima de regras estabelecidas e de leis, focados exclusivamente em realizar suas tarefas a qualquer custo, sendo guiados cegamente por um desvirtuamento da sentença “missão dada é missão cumprida” para agradar seus superiores e receber recompensas na carreira militar.
Tendo como pano de fundo a história do Smart, o autor expõe de maneira muito didática as relações de poder e as formas de compadrio que dão o tom da corrupção dentro do Exército. Pierrotti deixa claro que, em uma instituição tão bem protegida quanto as Forças Armadas, os atos que levam a aliciar, subornar e corromper um indivíduo, não ocorrem de modo grosseiro, tal como imagina o senso comum, mas se caracterizam pela sutileza de uma promoção a general, por exemplo. “Assim, indícios de corrupção podem até ser verificados no Diário Oficial, mas dificilmente comprovados, até porque o critério de promoção ao generalato no Exército não é por merecimento, mas por escolha pessoal, ou seja, não precisa ser justificado”, explica.
Nesse sentido, é bem ilustrativo um episódio da obra que mostra como foram premiados integrantes do Exército que concordaram em fazer parte do processo atabalhoado que levou à aquisição do Smart. Conta o narrador: em razão dos inúmeros erros no projeto, constantemente ignorados, e do desrespeito às normas técnicas e procedimentos administrativos, dois oficiais, Battaglia (oficial de artilharia protagonista da trama) e Aristóteles (engenheiro militar fiscal do contrato), exemplos de honestidade e correção, recusam-se a firmar o certificado de seu desenvolvimento, sendo substituídos pelos coroneis Amorielli e Schmidt – mais “flexíveis”, a quem “missão dada (não importa qual) é missão cumprida (de qualquer maneira)”.
Pois bem, a narrativa avança e descobrimos que, um mês depois da assinatura, Battaglia lê no boletim do Exército que ambos os oficiais responsáveis por ela foram enviados à Espanha para acompanhar os trabalhos da quarta fase do projeto Smart, lá ficando por 13 dias. “Acredito que essa ‘missão’ foi apenas um ‘prêmio’ para o Amorielli e o Schmidt passearem na Europa e colocarem alguns dólares no bolso”, diz o protagonista da trama. Prêmio que fica evidente no final da obra, quando ficamos sabendo que o coronel Amorielli fora promovido ao posto de general, após a entrega do simulador. “Era o mínimo que o Alto Comando do Exército poderia fazer para reconhecer e retribuir os ‘excelentes serviços’ de tão valoroso oficial à Força Terrestre”, ironiza o narrador.
Trama do livro
O livro “Diários da Caserna – Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar” conta a história da aquisição e desenvolvimento do Smart, simulador de apoio de fogo de artilharia, pelo Exército Brasileiro, junto a uma empresa espanhola de tecnologia chamada Lokitec. Ao longo de oito capítulos e mais de 500 páginas, acompanhamos como o processo para a implementação dessa tecnologia – que prometia ser o estado da arte dos simuladores de artilharia, mas que passou longe disso – se deu de maneira viciosa do início ao fim, com licitação fraudulenta, sem a prevista transferência tecnológica e com a entrega de equipamentos obsoletos e problemáticos.
O fio condutor da narrativa são três entrevistas concedidas pelo protagonista da trama, Battaglia, ao jornal El País. O periódico, após receber do BrasilLeaks (plataforma online de denúncias anônimas) um documento de 1300 páginas, intitulado Dossiê Smart, relatando um suposto esquema de corrupção entre generais brasileiros e uma empresa espanhola, decide investigar e entra em contato com Battaglia. Ele fora testemunha ocular do que acontecera no projeto, ao trabalhar durante anos como supervisor operacional e por ter sido apontado pelo dossiê como uma das principais vozes de resistência aos desmandos que ocorreram durante o desenvolvimento do simulador.
Inicialmente Battaglia se recusa a falar, por temer atentado contra sua vida, mas depois conta tudo que sabe: as primeiras tentativas de contratação sem licitação da Lokitec; os estudos tendenciosos para favorecê-la; as brigas internas no seio do próprio Exército; o turbulento desenvolvimento do projeto, marcado por pressões sobre os militares brasileiros para aprovar o simulador cheio de vícios; e o desfecho com exonerações, punições veladas e muito mais. Desse relato, dois personagens emergem de maneira marcadamente negativa: os generais Aureliano e Simão, que em diferentes ocasiões gerenciaram o projeto de desenvolvimento do simulador. Ambos mantêm relações indecorosas com o representante comercial da Lokitec, Papa Velasco, e buscam impor suas vontades, passando por cima das numerosas falhas que inviabilizariam o projeto.
A descrição minuciosa sobre como se deu o desenvolvimento Smart não faz, porém, com que o livro seja um mero relatório. Isto porque o autor expõe os acontecidos de modo que o leitor seja surpreendido a cada instante, sem querer tirar os olhos das páginas, ávido por saber o que ocorrerá em seguida. Contribui para o apelo do romance, o fato de que o livro não se atém apenas ao Projeto Smart, ele segue também as agruras pessoais de Battaglia, que não escapa ileso dos problemas vivenciados na caserna. Os próprios títulos dos capítulos do livro expõem o sincronismo fatal da vida profissional e pessoal do personagem, como “¿Luna de miel?”, “Divórcio” ou “No divã”.
A tentativa de compreender problemas estruturais e conjunturais bem reais das Forças Armadas e aspectos de socialização da denominada “família militar” e do seu pensamento como “reserva moral” da nação, que, na visão de alguns de seus membros, precisaria ser tutelada, com reinterpretações forçadas da Constituição Federal, também é um grande apelo para aqueles que buscam entender mais sobre as Forças Armadas e os militares, ainda sob a luz dos últimos acontecimentos: a inépcia de cerca de 7 mil militares que, de uma hora para outra, foram alçados ao governo passado; e os infames episódios da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Ficha Técnica:
Título: Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar
Autor: Rubens Pierrotti Jr.
ISBN: 978-65-5625-485-2
Formato: 16 x 25 x 23 cm
Páginas: 528
Preço de capa: R$ 69,90
Preço e-book: R$ 49,90
Editora: Labrador
Gênero: ficção brasileira