Por Gina Marocci
A história dos eventos, em geral, costuma registrar poucos nomes, geralmente de reis, nobres, religiosos e pessoas ricas, guerreiros ou soldados de alta patente, por exemplo. Por isso, quando queremos escrever sobre a massa de trabalhadores construtores, agricultores ou outros profissionais atuantes, os chamamos de povo, a gente do lugar. Pois bem, para construir a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, cabeça do Brasil, atuaram juntos europeus, africanos e povos nativos.
Com Tomé de Sousa vieram homens qualificados para construir, 14 pedreiros, 8 carpinteiros, caiadores, taipeiros, pelo menos 1 alvenel (pedreiro de alvenaria), que foram chefiados por Luiz Dias, mestre-pedreiro vindo do Mosteiro da Batalha; veio, também, o seu sobrinho, Diogo Peres, pedreiro, que trabalhou nas obras do Colégio dos jesuítas (Moreira, 1999). Nomeado Mestre das obras da fortaleza e cidade do Salvador, por Miguel de Arruda, ele trouxe de Lisboa traças (desenhos em planta baixa) e amostras (desenhos dos cortes e fachadas, ou seja, em elevação), das muralhas, perfil dos baluartes, plantas e alçados das casas e edifícios públicos. Esses projetos (propostas) foram realizados por Miguel de Arruda, arquiteto militar (segundo autores portugueses) e urbanista, profissional formado nos grandes canteiros de obras, ao lado do seu pai, Francisco de Arruda e do seu tio, Diogo de Arruda.
É importante colocar que no século XVI ainda não havia uma distinção entre arquiteto, engenheiro militar e urbanista em Portugal, pois todas essas definições representavam o profissional ainda formado nos canteiros de obras, não apenas em Portugal, mas na Itália, na Espanha e na Alemanha, por exemplo. Arruda trabalhou com renomados profissionais estrangeiros. Foi mestre das obras do Mosteiro da Batalha, dos palácios reais do Ribatejo, atuou nas obras da Fortaleza de Mazagão, Marrocos, e na Torre de Belém, em Lisboa, além de obras em Ceuta e Tanger, Moçambique e Goa (Bueno, 2003). Merecidamente, D. João III o nomeou Mestre das obras e dos muros e fortificações do reino, lugares d’além e Índia, cargo que lhe permitiu definir os parâmetros para Salvador. Portanto, Arruda e Dias foram os dois profissionais mais gabaritados para a idealização e a materialização da cidade no século XVI.

As obras da cidade começaram em 1° de maio, primeiramente os muros, depois os traçados das ruas e lotes. Os muros, primeiramente de madeira, foram erguidos depois em taipa de pilão e revestidos com cal proveniente da ilha de Itaparica. Recomendara-se a edificação da cidade em pedra aparelhada, pedra e cal, pedra e barro, taipais ou madeira, mas nesses primeiros anos fazia-se o possível com os materiais à mão.
Os moradores de Salvador exerciam várias atividades para se manter, fosse na agricultura, na pesca ou nas obras da cidade, na construção de engenhos de açúcar, na função militar, ou em serviços públicos, como o caso de Belchior Gonçalves, que era bombardeiro (soldado que manipula a bombarda), pedreiro e empreiteiro e construiu os açougues da cidade em taipa. Os açougues estavam vinculados ao Senado da Câmara como uma forma de controle sobre a qualidade da carne para venda.
Dos construtores chegaram-nos alguns nomes registrados em documentos e livros da época, todos pesquisados pela historiadora Patrícia Verônica Pereira dos Santos (2004). Assim, os pedreiros Fernão Gomes, Francisco Gomes, Gaspar Lourenço, Pero de Carvalhaes, Ruy Gonçalves, João Fernandes e Affonso Fernandes trabalharam nas obras da fortaleza de Salvador, com salários que variavam de 1$200 réis a 1$800 réis ao mês, quando não recebiam o pagamento em mercadorias. Desses, alguns eram empreiteiros de caminhos e muros da cidade.
Os edifícios da cidade, construídos inicialmente de taipa, eram cobertos com palha, que foi substituída por telhas de cerâmica graças ao trabalho de oleiros como Francisco Fernandes, João Salgado, Antônio Vaz de Leiria, Gomes Fernandes, João Rodrigues e Pedro Martins (Santos, 2004).
Desde o início das obras da cidade houve grande participação dos nativos, que representavam cerca de 60% da mão de obra, com a presença de homens livres e escravizados que exerciam várias funções. Conforme Etchevarne (2020), eles tinham aldeias muito próximas ao núcleo em construção e eram de grupos Tupi considerados assadores pintores, que produziam cerâmica tingida de vermelho (tauá) e branco (tabatinga). Eles construíram casas, igrejas e participaram das obras dos fortes de Nossa Senhora do Monte Serrat e de Santo Antônio da Barra (Santos, 2004).
Nos cinco primeiros anos da construção da cidade, a presença africana foi pequena, mesmo com sucessivos pedidos para a transferência de escravos de outras capitanias para Salvador. Contudo, por meio dos documentos pesquisados por Santos (2004) sabe-se que em 1550 houve três escravos africanos de Guiné nas ferrarias de Christóvão Aguiar. Em 1551 já havia escravos africanos de ganho atuando em Salvador, como um carpinteiro que servia a Antônio Gonçalves. Este tinha também um escravo que trabalhava como serrador. A mesma autora afirma que os escravos africanos atuavam como empreiteiros, carpinteiros e serralheiros e recebiam salários iguais aos dos portugueses. Nos documentos, dois nomes de trabalhadores negros se destacaram: Inácio Dias, serrador, e Pero de Lagos.
Pagava-se pelo trabalho das pessoas um valor muito baixo, em moedas que não tinham quase valor nenhum. Não valiam nem meio ordenado pela tarefa executada. O próprio Luiz Dias recebia o soldo de pedreiro, muito abaixo do que havia sido prometido. Às vezes os trabalhadores recebiam em mercadorias locais ou vindas de outras capitanias.
Em 1551, Luís Dias envia cartas e amostras a Portugal do que se fizera, e na carta a Miguel de Arruda observa que estava velho e cansado e que tinha saudade da família. Informava, também, que sua missão de erguer a fortaleza estava cumprida e indicava Pero Carvalhaes e Gomez, oficias pedreiros e mestres de obras como profissionais experientes e capazes de dar continuidade aos trabalhos da cidade (Santos, 2004). Assim forma os primeiros anos de vida da cidade, com trabalhadores nativos e estrangeiros, homens livres e escravizados.
No entorno da cidade (na Península de Itapagipe e no subúrbio ferroviário), fazendas com plantações de frutas cítricas, e engenhos de açúcar se instalaram nas ilhas até a baía de Aratu. Do Rio Vermelho a Itapuã, e na região da Quinta do Tanque, criava-se gado vacum (UFBA, 1998). Em todas essas regiões, pequenos povoados começaram a se formar.
REFERÊNCIAS
ETCHEVARNE, Carlos. A história da Bahia antes da colonização portuguesa. Revista Nordestina de História do Brasil, Cachoeira, v. 2, n. 4, p. 62-83, jan./jun. 2020. DOI: 10.17648/2596-0334-v2i4-1923.
MOREIRA, R. O arquiteto Miguel de Arruda e o primeiro projeto para Salvador. In: CONGRESSO DE HISTÓRIA DA BAHIA, 4, 27 set. a 1 out. de 1999. Anais […], Salvador: IGHBA; FGM, p. 123-144, 2001.
SANTOS, P. V. P. dos. Trabalhar, defender e viver em Salvador no século XVI. 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia. Evolução Física de Salvador. Edição Especial. Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 1998.